“confia, desconfiando”; “com um olho no burro e o outro no cigano”, são frases que ouvimos com alguma frequência. Expressões deste tipo estão associadas a traços de desconfiança, característicos de estruturas específicas da personalidade.
E se desconfiar qb pode até ser positivo, por revelar inconformidade e ser um elemento promotor de mudança, quando se enraíza no funcionamento do individuo pode ser bastante perturbador e reduzir significativamente a sua qualidade de vida.
Vejamos o seguinte exemplo:
António (nome fictício), 63 anos trabalhava com a esposa de 59 anos na sua loja de tintas e ferragens.
Andava muito cansado, queria passar alguns dias sem ir à loja mas não conseguia encontrar um empregado que satisfizesse as suas necessidades:
“parecem muito simpáticos no início, mas com o tempo percebia que só se queriam era aproveitar de mim”; “eu bem via, faziam-se muito amiguinhos dos clientes, e depois iam trepando, trepando”; “deviam estar à espera que eu batesse a bota para ficarem com tudo, se é que me entende” – diz acenando com a cabeça para o local onde estaria a mulher.
António começou a trabalhar desde muito novo. Abriu a sua primeira loja aos 30 anos com o dinheiro que foi juntando. Vive com a D. Maria (nome fictício) desde os 50 anos.
Tem 2 filhos de um casamento anterior. “nunca quiseram saber de mim, por isso também não quero saber deles” – afirma. “Só se lembram do pai para pedir” (em alguns diálogos percebia-se o enviesamento desta crença; os filhos procuravam manter algum contacto, que o pai recusava/negava mas não conseguia nomear situações concretas em que os filhos lhe teriam pedido algo). “Saem à pxxx da mãe, era uma interesseira que só se casou comigo por causa do meu dinheiro; dava troco a todos”, afirmava.
Segundo o António, diziam que andava sempre irritado, de mal com a vida, sem paciência. Um médico tinha dito que ele estava deprimido, mas segundo o António “maluco é o médico, eu não vou tomar porcarias nenhumas”. “até já fui à bruxa mas também me enganou, como os outros”; “doentes são eles, têm é inveja de mim e querem é ver-me mal”.
Esta é uma pequena amostra duma organização com traços paranoides (não confundir com a patologia psicótica, em que os sintomas são incapacitantes e onde pode ser necessário recorrer à intervenção medicamentosa e/ou internamento hospitalar).
O senhor António estava permanentemente em alerta e os seus pensamentos emergiam dos medos irracionais e da perceção enviesada da realidade subjetiva. A sua desconfiança acabava por condicionar substancialmente a sua vida social, profissional e a sua saúde no geral.
Vejamos algumas características da personalidade paranoide:
dificuldade recorrente em confiar no outro: por norma ninguém é de confiança, por isso tem um circulo muito restrito de pessoas em quem confia, pessoas essas, com frequência, associadas com a grupos espirituais e/ou religiosos;
argumentos e demonstrações lógicas não nutrem grande efeito: por muito bons que sejam os argumentos e explanações do outro, o sujeito com idealização paranoide irá sempre contrapor; no entanto tem bastante dificuldade em argumentar com algo concreto, baseando-se em sensações, perceções e idealizações, nas quais acredita como sendo absolutamente reais e verdadeiras. Considera que os que não acreditam nas suas ideias, estão contra si;
desconfiam sistematicamente que são vítimas de ataques ou de perseguições constantes, vendo na intenção do outro uma tentativa de, recorrentemente, o/a prejudicar.
Alguns estados paranoides podem ser confundidos com episódios associados à perturbação bi-polar, por estarem ligados a perceções exacerbadas das capacidades próprias ou a excesso de confiança. A pessoa pode acreditar que possui dons distintos ou superiores aos demais. Noutras alturas pode-se sentir profundamente desamparada e sem forças para continuar a “defender-se”.
Este tipo de funcionamento é patológico e a gravidade depende do quão angustiante ou incapacitante é a desconfiança. Há que perceber o impacto que tem na própria vida e na de quem o/a rodeia.
Uma abordagem compreensiva é facilitadora e tranquilizante. Como na maior parte das perturbações da personalidade, o objetivo da intervenção terapêutica não será a cura, mas antes a compreensão das características próprias e o desenvolvimento de alguma segurança que lhe possibilitará sentir o outro de forma menos ameaçadora.
Helena Coelho, psicóloga @psicomindcare