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Writer's pictureHelena Coelho

Joker, da psicose à psicopatia - um olhar clínico


Já muita tinta correu a propósito do filme Joker e este texto não pretende ser uma resenha do filme, mas antes um olhar clínico sobre o mesmo.

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix ) é um homem solitário e triste que, paradoxalmente, trabalha como palhaço. Vive em situação de grande pobreza com a sua mãe, uma idosa dependente de quem cuida, também ela com indícios de problemas mentais, e que o idealiza como uma pessoa feliz (chama-o de Happy). Para ela, Arthur veio ao mundo para fazer os outros sorrir e não parece ter consciência de que o filho nunca se sentiu verdadeiramente feliz, nem do terrível sofrimento em que vive.

Da psicose, à psicopatia...


Arthur é um doente psicótico que vive na idealização de ser um comediante famoso. Criando realidades imaginárias para fugir à dor e ao desamparo, chega a fantasiar que vive uma relação afetiva com a sua vizinha, que esta o compreende, o acompanha e o apoia, simbolizando o que mais deseja. Como consequência da sua doença, Arthur sofre de riso patológico, que o leva a rir-se de forma descontrolada e despropositada, em situações onde se sente mais vulnerável ou ansioso, como forma de expressar o seu desconforto. É alvo de chacota de colegas e de quem com ele se cruza, e o nome "Joker", que passou a assumir num determinado momento, vem precisamente de um comentário que um comediante, idolatrado desde sempre por Arthur, lhe fez num dos seus programas de TV (he´s a Joke - ele é uma piada).

Nas várias situações em que foi agredido, verbalmente ou fisicamente Arthur nunca retaliou, pelo contrário, a sua atitude era passiva e quase ingénua. Até que um dia, em que voltava para casa vestido de palhaço, foi vítima de mais uma situação de violência física e psicológica, que funcionou como um gatilho emocional. Arthur passa ao ato e usa uma arma que um suposto amigo/colega lhe tinha dado para ele se defender, matando três pessoas. Após o ato a culpa não se manifesta, num entorpecimento e fuga às emoções, canalizando-a para a expressão corporal, numa dança bizarra e apaziguadora que passa a fazer parte de si.

Este assassinato torna-se mediático não só por serem pessoas da alta sociedade como pelo simbolismo do que representa. As pessoas reagiram ao acontecimento e o homem com máscara de palhaço (Arthur) passou a representar a revolta dos que sofriam, dos socialmente desprotegidos.

Pela primeira vez, Arthur viu-se ... e percebeu que é visto e valorizado. A partir daí entra numa espiral de matar o seu "velho eu", o Happy e tudo o que o representa, incluindo a sua própria mãe que terá fantasiado sobre o seu nascimento e sobre o seu pai. E se persiste a dúvida sobre a existência de coerção sobre a veracidade na paternidade de Arthur (supostamente uma das pessoas mais poderosas da cidade), está bem presente o declínio mental da mãe ao ponto de negligenciar Arthur, que sofreu desnutrição e maus tratos por parte das pessoas com quem se ela relacionou, desde criança. A mãe, em negação, continuava a afirmar que Arthur era uma criança dócil e feliz e que nunca o ouviu sequer chorar...

Contexto social doente e amor disfuncional

Claro que o contexto não leva, fatidicamente, à psicose, mas não podemos esquecer a sua relevância, ou fazer de conta que não é um importante fator no desenvolvimento de psicopatias. Sabia que se formos expostos a uma situação de total ausência de ruído o nosso cérebro, passados 45 minutos, começa a "desligar" e a desenvolver alucinações (comum em psicoses)?

Imagine o estrago que pode fazer vivências traumáticas recorrentes: fome e outras formas de privação fisiológicas, maus tratos físicos e psicológicos.

Apesar de no filme não ser claro, é provável que o papel de cuidador da sua mãe não decorra de necessidades associadas à idade e que de alguma forma o tenha feito desde sempre, numa inversão de papéis de cuidador.

Vive-se um período de grande turbulência, com enormes desigualdades sociais e violência. Há todo um "lixo" social não tratado e amplificado por quem tem recursos económicos e detém o poder. O resultado dessas dificuldades reflete-se, também, no apoio social que Arthur deixa de receber deixando de ter acesso à medicação. Ele não interessa, as suas necessidades e a sua dor não são ouvidas.

Está, assim, preparado um cocktail emocional que pode explodir a qualquer momento.

Há esperança para Joker? Provavelmente sim... a uma certa altura do filme Arthur diz, com naturalidade, a um ex-colega que nunca o tratou mal: "não tenhas medo, não te vou fazer mal algum, podes sair". São estes os núcleos (afetivamente) saudáveis que serão a ponta por onde se pode tecer algum tipo de recuperação.


Helena Coelho, psicóloga clínica @psicomindcare



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